José Pereira Lima Aço

José Pereira Lima Aço

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O Tenente José Pereira Lima Aço nasceu em Barcelos, Portugal, e atravessou o Atlântico para se tornar latifundiário e pecuarista, pois, na época, no final do século XVII e início do século XVIII, o Brasil era palco dos três grandes ciclos econômicos: o do ouro, da cana-de-açúcar e do gado.

Ao que tudo indica, sua primeira parada, na terra dos tupiniquins, foi em uma antiga cidade às margens do Rio São Francisco, em Penedo, hoje, estado de Alagoas. Essa urbe, depois de se desvencilhar da invasão holandesa, transformou-se num verdadeiro ponto de comércio, e, por conseguinte, em ponto de desembarque obrigatório para os imigrantes e para aqueles que desejavam penetrar o sertão do Nordeste.

Da cidade de Penedo muitas famílias partiram em direção às selvas, palmilhando as margens dos rios, na esperança de encontrar terras ociosas, onde pudessem desenvolver suas culturas, sobremodo, a pecuária extensiva, que não exigia grandes investimentos, pois os campos abertos, com suas pastagens naturais, eram uma constante nas caatingas e cerrados interioranos.

Uma leva de gente havia se embrenhado pelas veredas nordestinas, indo esbarrar nas nascentes dos rios que percorriam. Alguns, saindo de Penedo, alcançaram a “Serra” do Araripe, apeando-se em solo fértil e abundante de águas, um verdadeiro oásis que separava os sertões de Pernambuco, Paraíba, Piauí e, na porção mais aguada, o Ceará, não deixando de observar, também, a proximidade com o Rio Grande do Norte.

Nos primeiros grupos migracionais, que aportaram nos Cariris Novos, estavam o Tenente José Pereira Aço e sua esposa, Apolônia Correia de Oliveira. Aí, fizeram sua residência e construíram suas histórias, que se confundem, integralmente, com a história do Cariri.

1. Aquisição de Terras no Cariri

Depois de se estabelecer no Sul do Ceará, o Tenente José Pereira Aço tratou de arrendar e adquirir terras para criar seus gados ou ganhos, chamados, em português arcaico, de gados “vacuns” e “cavalares”, isto é, bovinos e equinos.

José Pereira Aço fez aquisição de terras muito fecundas e abundantes de água, uma delas no “Sítio Corrente”, também chamado “Corrente Grande” ou “Corrente do Pereiraço”, e outra na “Ponta da Serra”, terras localizadas entre os atuais municípios de Crato/CE e Nova Olinda/CE. Antonio Alencar de Araripe[1] comenta sobre a origem dessas propriedades que:

Residia por esse tempo no Cariri um português de nome José Pereira Aço, protegido de José Gomes de Moura, rico possuidor de toda a ribeira dos Carás, com suas vertentes até a Serra do Araripe, morando ele no Sítio Boqueirão, centro de suas terras, que de ribeira abaixo chegavam até a Cabeça da Vaca.

Pelos serviços recebidos de José Pereira Aço, o possuidor destas terras lhe cedera na cabeceira da dita ribeira uma situação no lugar denominado CORRENTE GRANDE, de que o concessionário fez a sua residência.

Porém, nem todas as terras galgadas por José Pereira Aço seriam por meio de prestação de serviços, isto, porque, no dia 15 de junho de 1718, ele pediu uma sesmaria no Rio Salgado, de três léguas de comprimento por uma de largura, alegando que não possuía terras suficientes para acomodar seus gados “vacuns e cavalares”.[2] Essa concessão foi deferida no dia 17 de junho do mesmo ano.

Disse José Pereira Aço que a terra pretendida era devoluta e desaproveitada, e que ficava “nas ilhargas” (nas laterais) da propriedade de Gil de Miranda,[3] da parte do nascente, confrontando com a Serra das Piranhas, onde havia uns olhos de água, com a dimensão de três léguas de comprimento por uma de largura.[4]

Outra sesmaria foi pedida pelo Tenente José Pereira Lima Aço e pelo Capitão Antonio Coelho de Resende, no dia 24 de abril de 1735, sob o mesmo argumento de não possuir terras suficientes para acomodar seus gados.[5]

Esses sesmeiros pediram três léguas de terra, para cada um, informando que as terras pretendidas também eram devolutas e desaproveitadas, estando localizadas nas cabeceiras (nascentes) do Rio “Cariú” (Cariús) e na fralda (sopé) da Serra do Cariú (Cariús). Essa sesmaria é detalhada da seguinte forma:[6]

O Rio Cariú que nasce da serra chamada a Serra do Cariú, que corre do Sul para o Norte, três léguas de comprido pelo rio acima, meia para cada banda [duas linhas completamente estragadas no manuscrito] encampinada até o Riacho do Caruatá, com uma légua de largo da serra para o Rio Cariú, com todas as sobras que se acharem na dita serra, entrando todas as terras prescritas, reservando as inúteis.

O Rio Cariús nasce no atual município de Santana do Cariri (antigo Brejo Grande)[7], na mesma localidade em que era possuidor de terras a família do Coronel Manoel Ferreira Ferro.[8]

As doações de sesmarias tornaram seus beneficiários verdadeiros latifundiários, dando-lhes poder e riqueza, porém, as questões sobre a posse dessas terras, custavam-lhes muito caro, às vezes a própria fortuna, a liberdade, ou a vida. Foi essa atmosfera que favoreceu o surgimento de uma intriga entre o Tenente José Pereira Aço e outro potentado, o Coronel Manoel Ferreira Ferro.

2. O Conflito por Terras: Tenente José Pereira Aço x Coronel Manoel Ferreira Ferro

O desbravamento do interior continental, principalmente o do Nordeste, foi marcado por disputas de terras, sendo a literatura rica em crônicas que apontam conflitos tribais, entre os próprios índios, que competiam pelo habitat, mesmo não possuindo a ideia de propriedade que tinham os euro-brasileiros.

Frequentemente, aproveitando-se dessas desuniões das tribos nativas, os desbravadores aliciavam uma das partes, fazendo convite aos índios para que se tornassem seus aliados na guerra contra o “gentio bravo” (índios não civilizados), em troca de ajuda nas pelejas contra o inimigo. Depois de derrotarem seus adversários, os índios vencedores e uma parte dos derrotados eram internados nas missões religiosas, numa área de uma légua quadrada,[9] e o restante das terras, antes ocupadas por esses índios, era rateada entre os desbravadores e povoadores.

Mas, a dominação e o cárcere do silvícola não bastavam para que a paz e a harmonia reinassem naqueles rincões, pois o sistema de distribuição de terras (sesmarial), utilizado pela Coroa portuguesa, era instrumento de discórdia entre os seus súditos, isso, porque a doação da terra poderia ser fraudada, tanto pelas autoridades quanto pelos particulares que as solicitavam.

Comumente, uma mesma área era doada mais de uma vez, quando não, por falta de uma exata demarcação, os limites das terras se confundiam, o que gerava inúmeros litígios entre os sesmeiros. E, como a justiça era algo caro, pois o Tribunal da Relação ficava á léguas de distância, na Bahia, os litigantes, por via de regra, usavam o antigo método da autocomposição, onde vencia o que detivesse mais força de armas e dinheiro.

Muitos conflitos dessa espécie ensanguentaram os torrões nordestinos, e, no Ceará, uma verdadeira guerra civil foi deflagrada, sendo o Cariri palco da principal batalha, em agosto de 1724, na Fazenda Caiçara (Missão Velha/CE), fato que, indubitavelmente, foi presenciado pelo Tenente José Pereira Aço.

As páginas da história cearense estão repletas dos episódios em que famílias do Cariri se engalfinhavam com armas em punho, na tentativa de continuar na posse das terras litigiosas, e quando esse caos começava a arrefecer, na primeira metade do séc. XVIII, o Tenente José Pereira Aço desaveio-se com um membro dessas famílias, o que é narrado pelo médico francês Pedro Théberge[10]:

Poucos anos depois do levante dos Montes com os Feitosas, apareceu outra intriga muito lamentável entre um filho de Francisco Alves Feitosa, chamado Manoel Ferreira Ferro, e um português rico, poderoso e com créditos de valente, de nome José Pereira Lima e morador na fazenda Ponta da Serra do Araripe; intriga suscitada por causa de limites entre terras que ambos possuíam no Brejo Grande, e que depois de ter-se restringido em começo aos meios legais, passou a ser discutida por vias de fato. José Pereira Lima acrescentou o apelido Aço ao seu nome, aludindo por contraposição ao nome Ferro de seu adversário; e nestas disposições deram começo de parte a parte a destruírem por assassinatos as pessoas da parcialidade contrária. O Governo do Ceará, informado destas desordens, mandou prender José Pereira Lima Aço, o qual enviou para Limoeiro, ou mais provavelmente para a Bahia, conseguindo ele livrar-se somente depois de longos anos, como era costume nessa época. Não sei em que tempo foi efetuada essa prisão, mas posso afirmar que foi antes de 1734, porque não encontrei o nome dele lançado no rol dos culpados do termo do Icó, que principiou de 1734 em diante, ao passo que achei muitos parciais e mesmo escravos seus e do seu adversário lançados no dito rol, por crimes de morte praticados nesta contenda. O certo é que depois da sua soltura, voltando para esta Capitania, saltou em Pernambuco onde encontrou sua mulher que tinha ido ao seu encontro. Foi ali mesmo acometido da bexiga que causava neste tempo grandes estragos, e sucumbiu a seus efeitos.

Théberge apresenta esse episódio com o título de “rixa entre Ferros e Aços”, o que fora adotado por outros escritores, inclusive pelo ilustrado Capistrano de Abreu, que se referiu a esse embate como “duelo entre os Ferros e Aços”, alocando o período dessa luta entre 1730 e 1750, aproximadamente.[11]

Luiz de Aguiar Costa Pinto, doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, deturpa as informações trazidas pelos antigos cronistas, dizendo: “Da luta entre Ferros e Aços também ficou, para um riacho, o nome de Riacho de Sangue”[12], contendo esta frase uma informação inverídica e inaudita por toda a historiografia.

Quanto à existência dessa luta de Ferros e Aços, o escritor Antônio Gomes de Freitas nega que tenha havido, e arremata: “se houve, não deve ter ultrapassado o campo judiciário”. Isto, segundo esse autor, pela presença do desembargador Antônio Marques Cardoso, que foi enviado pelo Rei de Portugal (D. João V) para pacificar o Ceará, “antes tão atormentado por motins e levantes sangrentos”. Ainda, trata por lenda, o acréscimo da alcunha “Aço”, por parte de José Pereira Lima, em face da contraposição ao patronímico “Ferro”, do seu “suposto contendor”, o Coronel Manoel Ferreira Ferro. Ademais, afirma que “José Pereira nunca usou o sobrenome final Lima”, visto que, desde quando veio morar no Cariri (em 1718) sempre assinou nos documentos públicos apenas “José Pereira Asso”.[13]

Essa última afirmativa é ratificada por Tristão de Alencar Araripe, grafando o nome “José Pereira Aço”, sem o apodo “Lima”, porém, no que concerne à luta, este último autor confirma ter ocorrido, do plano jurídico, na origem, às vias de fato, ou seja, assegura ter havido o conflito armado.[14]

A respeito dessa luta, também nos dá notícia João Brígido[15], em que reafirma a existência da sobredita contenda, praticamente repetindo o que fora dito por Théberge, e, fundamentado em documentos, fala sobre a data da prisão de “José Pereira Lima Aço”, especulando que tal fato ocorrera depois de 1734, porém, antes de 1741. Isso porque havia recibos e créditos a ele passados, com data de 1734 (evidência de que a essa data ainda vivia), como também por haver uma escritura de arrendamentos de terras feita por Apolônia, esposa do mesmo, como administradora dos bens do casal, datada de 1741 (prova de que nesta época ele encontrava-se ausente). O autor acrescenta que o período dessa luta foi de 1734 a 1747, e que o José Pereira Aço esteve preso na prisão do Limoeiro (Portugal), falecendo, após a sua soltura, na Bahia[16].

Entre a família Feitosa, a tradição conservou alguns acontecimentos relacionados à luta. Conta-se que quando Manoel Ferreira Ferro saía em viagem, pelejando contra o Pereira Aço, a esposa do primeiro, D. Bernardina, punha-se a rezar na intenção do marido ausente e, enquanto pronunciava o Pai Nosso, simultaneamente fazia-o “falando e sorrindo, escarrando e cuspindo”.[17]

Assim, é provável que esse embate tenha ocorrido, porque, além de haver indícios trazidos tanto pela tradição oral, quanto pela crônica dos historiadores pretéritos, também não se pode, arbitrariamente, negar a afirmativa de Théberge e Brígido, pois há um mínimo probante em suas conjunturas, respaldadas em documentos verossímeis. E, para reforçar a existência dessa luta, outras evidências, extraídas de documentos inéditos, serão apresentadas.

2.1. Documento inédito: Prova da Prisão de José Pereira Aço

Para elucidar as dúvidas trazidas sobre a existência desse enfrentamento armado e esmiuçar alguns fatos adjacentes, resta a análise dedutiva de um documento inédito, constante do requerimento feito por José Pereira Aço ao Rei, D. João V, no qual pede para ser solto da cadeia do Recife, senão, a sua transferência para a cadeia da Bahia:[18]

Senhor

Jozé Pereira Aço, Vaçalo de Vossa real Majestade, que trinta anos tem de vosso Real Serviço nas conquistas dos bárbaros e gentios, que habitavam na Capitania do Ceará Grande de Pernambuco, destruindo muitas nações de gentios e povoando muitas terras de que, hoje, tem a vossa Real Coroa muitos lucros, e em prêmio de meus serviços me deram-me confiscando a minha fazenda, e acho-me na cadeia de Pernambuco há 3 anos, carregado de ferros à ordem do sindicante Antonio Marques Cardoso, e fazendo meus requerimentos para que me mande para o estado da Bahia com as culpas que falsamente se me terão arguido a nada sou atendido, e como me querem consumir na prisão.

Para Vossa Real Majestade se digne deferir-me minha soltura mandando por expressa ordem sua seja eu remetido

A meu livramento das culpas que falsamente se me tem arguido, atendendo aos meus serviços, desvelo e cuidado com que sempre me mostrei neles, e consta de meus documentos. A Real Pessoa de Vossa Real Majestade, que Deus guarde muitos anos “g.e”. Cadeia do Recife de Pernambuco 19 de Dezembro de1739.

José Pereira Aço[19]

Desta feita, muito do que afirmaram os cronistas, sobre a citada luta, se coaduna com a verdade documental, em sendo José Pereira Aço (com a supressão do patronímico "Lima") desbravador dos sertões e "conquistador" de índios. Preso, em verdade, na Capitania de Pernambuco.

Segundo o mesmo documento, sua prisão ocorrera em 1736, por ser-lhe atribuídas culpas pelo desembargador Antônio Marques Cardoso, que veio à Capitania do Ceará para tirar devassas e aplicar sanções aos cabeças das sublevações ocorridas na década de 1720 e 1730.

2.2. Carta do Desembargador Antonio Marques Cardoso acerca das Prisões na Ribeira do Jaguaribe

Em uma carta ao Rei D. João V, datada de 20 de abril de 1738, o desembargador Antonio Marques Cardoso informa sobre a apuração da “sublevação” ocorrida na Ribeira do Jaguaribe, entre as famílias Montes e Feitosa, mencionando a prisão de 23 pessoas, “criminosos e vadios”, que foram remetidas para Pernambuco. Fala a carta do dito desembargador:

E assim, sucedendo haver bom sucesso nestas prisões, farei dos ditos culpados com os mais, que já ficam seguras, remessa para a Cadeia da Vila de Santo Antônio do Recife de Pernambuco por não ser a da Fortaleza desta Capitania de sustentar com segurança presos sem estarem de dia e de noite com sentinelas, e por essa causa já remeti em 31 de Janeiro deste presente ano vinte e três criminosos e vadios para a dita cadeia do Recife de Pernambuco, uns destes, culpados em uma devassa de duas sublevações que houveram na Ribeira do “Acaracû” [Acaraú] desta Capitania em os anos de mil e setecentos e vinte e quatro, e vinte e nove, e em várias devassas, que também tirei de mortes sucedidas na dita Ribeira em a qual, e na de Jaguaribe, se prenderam também alguns dos ditos vadios, que por elas andavam vivendo de gados alheios, que juntavam, entrando nestes números outros culpados na devassa da residência do Ouvidor Geral que foi desta Capitania, Antônio de Loureiro Medeiros, e de José Mendes Machado, e na do Capitão-mor Francisco Duarte de Vasconcellos, e, juntamente, quatro na devassa das sublevações da dita Ribeira do Jaguaribe, dois em umas mortes e mais inquietações, e dois dos mais culpados nas mesmas sublevações.

De todos estes criminosos, só dez hão de remeter para a Cadeia da Cidade da Bahia com três vadios mais, que vão autuados, e quatro vadios remeti ao Governador de Pernambuco para que vão servir na Praça, que lhe parecer por se me mandar nas ordens, que trouxe, os remetesse para as Praças Ultramarinas, a que entendi ficar à disposição dos Governos delas, e assim dos mesmos lhe fiz remessa por ser essa Praça mais vizinha, recomendando-lhes, os mandasse para parte donde não viessem para esta Capitania, pelo risco, que sem dúvida corriam as pessoas que os prenderam, e por todos fazem o número de dezessete, e seis dos mais criminosos culpados nas diligências da Ribeira de Jaguaribe, que com os ditos dezessete fazem o mesmo número dos ditos vinte e três, deprequei ao Ouvidor Geral de Pernambuco deixasse ficar na cadeia do dito Recife, até que se me mandasse ordem se os havia de remeter para a Corte, ou para a Cidade da Bahia na forma, em que tenho representado pela impossibilidade de suas fazendas não poderem suprir a remessa tão distante, no que e em o mais mandará Vossa Majestade a que for servido. Fortaleza, e de abril 20 de 1738.[20]

Observa-se que a prisão na Cadeia da Fortaleza, na Capitania do Ceará, era inviável, pois sua estrutura não oferecia segurança nem garantia de que os presos nela continuassem, pois essa enxovia era precária, feita de com troncos de carnaúba.[21] Por isso, haver a necessidade de remeter tais presos para a Cadeia do Recife, na Capitania de Pernambuco e, outros, para a Cadeia da Bahia.

Contudo, essas remessas, principalmente para a Bahia, dependiam dos bens confiscados aos presos, os quais eram usados para satisfazer as despesas com as transferências, sendo que muitos dos detentos não possuíam recursos suficientes para cobrir tais gastos.

Decerto, José Pereira Aço figurava entre os 23 indivíduos que foram presos na Capitania do Ceará, porém, sua transferência parece ser justificada, pois, como ele mesmo disse, sua fazenda havia sido confiscada, sem dúvida, com o escopo de custear as despesas de sua prisão.

2.3. Um escravo do Tenente José Pereira Aço no Rol dos Culpados

Apesar de José Pereira Aço afirmar que era inocente, pois, em suas palavras, as culpas que lhe imputavam eram falsas, o nome de um escravo dele figurou no rol dos culpados, como já havia dito Pedro Théberge.

Esse escravo era um índio tapuia, ou seja, de língua travada, que não falava tupi, por nome Manoel, e figurou no rol dos culpados da Capitania do Ceará, na data de 27 de abril de 1730, como homicida: “Manoel, tapuia escravo do tenente José Asso com culpa de morte”.[22]

Neste mesmo rol constam os nomes de vários dos povoadores da Capitania do Ceará, inclusive, pessoas das elites agrárias, sendo difícil encontrar alguém, da época, que não fosse culpado pelos levantes e sublevações, furto de gados, mortes e outros crimes.

A apuração desses delitos se concentrava, principalmente, em torno da guerra de 1724, tendo as autoridades a tarefa de prender e castigar os principais cabeças, entretanto, as circunstâncias não permitiam que isso acontecesse, devido às distâncias e aos parcos recursos públicos, restando penalizar apenas aqueles que a mão do Estado alcançasse.

Aparentemente, José Pereira Lima Aço não participou diretamente do levante de 1724, porque seu nome aparece poucas vezes, e apenas como informante dos fatos investigados pelas autoridades. Como exemplo, cabe mencionar uma carta do Ouvidor Geral do Ceará, Vitorino Pinto da Costa Mendonça, de 10 de outubro de 1726, informando ao Rei D. João V a respeito da incitação que os Feitosa faziam aos índios Jenipapos para um novo levante.

Pela leitura da carta, parece que o Tenente José Pereira Aço tomou a parcialidade da família Montes, contrária aos Feitosa, pois, ao lado do Coronel Francisco de Montes Silva, certificou ao Ouvidor Geral sobre a organização do levante arquitetado por Francisco Alves Feitosa e outros envolvidos nas inquietações da Capitania, que pretendiam obter o perdão geral do Rei por meio do sequestro do Capitão-mor e do dito Ouvidor Geral, os quais seriam forçados pedir o perdão em benefício de todos os sublevados. Reza o documento:

...como o dito Coronel Francisco Aves Feitosa estava avisado pelo Capitão-mor desta Capitania, para vir com sua gente passar mostra no Icó, se publicou geralmente que para amostra guardavam o levante, e que aí queriam levantar-se com armas nas mãos, metendo-me a mim, e ao capitão-mor no meio, e levando-nos assim onde estava o dito desembargador nas vilas, para que nós todos em nome de Vossa Majestade lhe dessemos perdão, ou lho alcançássemos de Sua Majestade, dando-lhe conta, ficando eles sempre com as armas nas mãos, até vir o perdão, cujo procedimento souberam além dos ditos José Pereira Aço e Francisco de Montes, o reverendo visitador Felix Machado... [23]

Talvez, a disputa entre o Tenente José Pereira Lima Aço e o Coronel Manoel Ferreira Ferro tenha sido um prolongamento das intrigas e motins ocorridos nas décadas de 1710 e 1720, podendo-se enumerar duas causas principais para esse embate, primeiro a terra, nas nascenças do Rio Cariús, e, em segundo lugar, pelo fato de o Tenente José Pereira Aço ter tomado a parcialidade da família Montes durante a guerra.

3. José Pereira Lima Aço ou apenas José Pereira Aço?

Como já ficou dito, existe uma discussão entre os historiadores em saber se o nome mais correto seria José Pereira Lima Aço (conforme o apontamento de João Brígido e Pedro Théberge) ou, apenas, José Pereira Aço (segundo a afirmação de Antonio Gomes de Freitas e Tristão de Alencar Araripe).[24]

Na época, não existia uma regra rígida para o uso dos nomes, consequentemente, havendo certa flexibilidade nesse aspecto. Frise-se que o Estado era confessional, ou seja, a política, a administração e a justiça estavam ligadas intimamente à religião, sendo a Igreja responsável por fazer o registro público das pessoas, como nascimento, casamento e óbito, antecipando as funções, hoje, exercidas pelos cartórios.

Geralmente, na pia batismal, a criança recebia apenas o primeiro nome (o prenome), que era escrito no seu assentamento de batismo e guardado na Igreja. Assim, os dois sobrenomes (do pai e da mãe) ficavam a cargo do costume, permitindo maior liberdade de sua escolha. Por isso, comumente, uma mesma pessoa poderia usar um número variável de sobrenomes, inclusive adotando outros que fossem alheios à sua família, como, por exemplo, nomes de objetos, animais e coisas.

O nome do Tenente José Pereira Aço aparece em uma carta de sesmaria com um sobrenome trocado, substituindo-se “Pereira” por “Ferreira”, o que aceitável, pela semelhança fonética entre as duas palavras, algo recorrente em outros registros de pessoas diversas.

Ressalte-se que no Cariri cearense existe, desde o período colonial, uma família numerosa chamada Ferreira Lima, que se entrelaçava com o Tenente José Pereira Aço, pois Luzia Oliveira de Gusmão (irmã de Apolônia - esposa do Tenente José) era casada com o português Mateus Ferreira Lima, moradores no Sítio Corrente[25] (Corrente do “Pereiraço” = Pereira + Aço) onde o Tenente José Pereira era proprietário. Isso levanta a hipótese de Manoel Ferreira Lima ser parente consanguíneo de José Pereira Aço.

Os antigos documentos registram o nome “José Pereira Aço”, desde o mais antigo, como a carta de sesmaria do dia 15 de junho de 1718 (ver item 1), bem como os subsequentes, por exemplo, no dia 30 de junho de 1733, quando assinou um documento relativo a uma disputa de terras entre a viúva de Antonio de Souza Gularte e os Mendes Lobato.[26] Igualmente, o mesmo nome (José Pereira Aço) foi assinado na carta que ele escreveu ao Rei no dia 19 de Dezembro de1739 (ver item 2.1).

Como é óbvio, o sobrenome “Aço” não era nome de família, mas um apelido adotado pelo Tenente José Pereira, que, decerto, substituiu-o por “Lima”, mantendo a proporção usual da época, de um nome triplo (um prenome seguido de dois sobrenomes). Portanto, parece não ser descabido admitir que ele se chamava, originalmente, “José Ferreira Lima”, porém, ficando essa mera hipótese à espera de confirmação.

4. A Família do Tenente José Pereira Aço e o Povoamento do Cariri

Nem todos que chegaram ao Cariri, no final do séc. XVII e início do séc. XVIII, merecem o título de povoadores, mas, simplesmente, o de desbravadores, pois, muitos adquiriram a terra por sesmaria e não ocuparam o solo, o que se deu por motivos diversos: alguns por inércia (deixando as concessão prescreverem), outros para vender ou arrendar (costume bastante disseminado na época), e o restante por ser esbulhado de suas posses.

O conceito de povoamento variou ao longo dos anos, pois, na época das concessões sesmariais, o sentido era mais amplo, entendendo-se por povoamento da terra, em termos legais, não só o humano, mas o que fosse feito através de animais, mais especificamente, por gados.

Então, adotando um sentido mais restrito de povoamento, como aquele realizado pela ocupação e exploração humana direta do solo, pode-se afirmar que o núcleo familiar do Tenente José Pereira Aço foi responsável por esse processo no Cariri.

4.1. Origem e Imigração

De acordo com os apontamentos genealógicos do Conselheiro Tristão de Alencar Araripe (descendente do Tenente José Pereira Aço),[27] pelos anos de 1655 e 1660, um navio, vindo de Portugal, aportou em Sergipe, encontrando-se nessa embarcação uma família, que vinha residir no Brasil, e uma moça dessa mesma família despertou o interesse do Capitão do dito navio, que, depois de ir novamente a Portugal, de lá retornou para casar-se com a tal rapariga. Assim, esse casal, dedicando-se à agricultura, fez residência em Sergipe, onde nasceram seus cinco filhos: Antão, José, Beatriz, Maria e Izabel.

Izabel, no ano de 1680, casou com um português chamado Antonio de Oliveira, com quem teve cinco filhos: João, Apolônia, Desidéria, Luiza e Bárbara. Na era de 1698 essa família deixou Sergipe para residir pouco acima da Vila de Penedo, pois, neste último lugar, morava a família do esposo de Izabel.

Quase à mesma época, um português de Barcelos, o Tenente José Pereira Aço, morava nos Cariris Novos,[28] vivendo de negócios e de aprisionar índios, levando suas mercadorias para o comércio de Penedo, e, aí, certa vez, adoeceu, sendo tratado na casa do português Antonio de Oliveira, quando, depois de restabelecer a saúde, aproveitou para pedir Apolônia em casamento, ocorrendo o matrimônio no ano de 1702. [29]

O Tenente José Pereira Aço levou sua esposa para residir nos Cariris Novos, e, juntamente, as irmãs de Apolônia (Desidéria de Andrade Ferreira c/c João Gonçalves Diniz, Luzia de Oliveira Gusmão c/c Mateus Ferreira Lima e Bárbara Correia de Oliveira c/c Leão da Franca). Estas mulheres formam quarteto sergipano que, segundo Monsenhor Francisco Holanda Montenegro, representa “a árvore genealógica de dois terços dos povoadores da região do Cariri”.[30]

Inegavelmente, os filhos do Tenente José Pereira Aço e os filhos de sua esposa formam a base de ancestralidade de quase toda a população do Cariri, misturando-se e originando outras famílias, como os Ferreira Lima, os Ferreira Lima Verde, os Pedroso, os Alves de Figueiredo, os Norões, os Calou, os Alencar Araripe, os Maia, os Sucupira, os Marrocos Teles etc.

Seria exaustivo declinar todos os nomes ilustres que descendem do Tenente José Pereira Aço, por isso, apenas um será citado, em razão de ainda estar vivo na memória do povo, não só do Cariri, mas em todo o território nacional, sendo ele o Padre Cícero Romão Batista.

5. O Padre Cícero Romão Batista: Trineto do Tenente José Pereira Aço

Dos descendentes do Tenente José Pereira Aço, destaca-se o Padre Cícero Romão Batista, sendo esse parentesco, em linha reta, pela linha paterna, ou seja, o pai do Padre Cícero, Joaquim Romão Batista (Mirabeau ou Mirabô) era “bisneto” [31] do Tenente José Pereira Aço.

Mas, que importância poderia ter a identificação desse parentesco? E a resposta é a de que as relações em torno da família e da propriedade sempre foram bem estreitas, pois esses primeiros conflitos, dos quais fez parte o Tenente José Pereira Aço, disputando terras, dilataram-se no tempo, alcançando gerações posteriores, porque, como é sabido, o Padre Cícero também esteve ligado a conflitos por terras, como a “Questão de 8”, pelas minas de cobre do Coxá, em Aurora/CE[32] e, indiretamente, o massacre do Caldeirão, no Crato/CE (isto, porque a comunidade dirigida pelo Beato José Lourenço tinha a posse de fato sobre as terras pertencentes ao Pe. Cícero, contudo, este legou a propriedade delas, em seu testamento, para a Ordem dos Salesianos, o que gerou toda a discórdia).

Quanto à autocomposição, ou seja, da justiça com as próprias mãos, também é evidente tal semelhança entre o que praticou o Tenente José Pereira Aço, combatendo o Coronel Manuel Ferreira Ferro, e o que inúmeras vezes fez o Padre Cícero, manipulando levas de jagunços e cangaceiros para agirem em favor de seus interesses, como na Guerra de Sedição do Juazeiro, em que pese opiniões contrárias.

O estudo desse parentesco ultrapassa as raias da simples genealogia e da mera narrativa histórica, atingindo outros ramos, como a sociologia e a antropologia, pois a violência, a disputa pela propriedade, o cangaço e o messianismo são apenas fruto das relações do período colonial, momento em que foi gerada a base da organização social dos tempos atuais.